3.1 Deus em três Pessoas: A Trindade
3.2 Santidade de Deus
3.3 Onipresença e Onipotência
3.4 A Auto-existência e existência Autônoma de Deus
3.5 Deus Reina: A Soberania Divina
3.6 A Soberania de Deus: Liberdade e Aspectos do Soberano Poder de Deus
3.7 A ira de Deus
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Como Deus pode ser três pessoas, porém um só Deus?
Podemos definir a doutrina da Trindade do seguinte modo: Deus existe eternamente como três pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - e cada pessoa é plenamente Deus, e existe só um Deus.
A palavra Trindade não se encontra na Bíblia, embora a idéia representada pela palavra seja ensinada em muitos trechos. Trindade significa "tri-unidade" ou "três-em-unidade". É usada para resumir o ensinamento bíblico de que Deus é três pessoas, porém um só Deus.
Às vezes se pensa que a doutrina da Trindade se encontra somente no Novo Testamento, e não no Antigo. Se Deus existe eternamente como três pessoas, seria surpreendente não encontrar indicações disso no Antigo testamento. Embora a doutrina da Trindade não se ache explicitamente no Antigo Testamento, várias passagens dão a entender ou até implicam que Deus existe como mais de uma pessoa.
Por exemplo, segundo Gn 1.26, Deus disse: "Façamos o homens à nossa imagem, conforme a nossa semelhança". O que significa o verbo ("façamos") e o pronome ("nossa"), ambos na primeira pessoa do plural? Alguns já afirmaram tratar-se de plurais majestáticos, forma de falar que um rei usaria ao dizer, por exemplo: "Temos o prazer de atender-lhe o pedido". Porém, no Antigo Testamento hebraico, não se encontram outros exemplos em que um monarca use verbos no plural ou pronomes plurais para referir-se a si mesmo nessa forma de "plural majestático"; portanto, essa sugestão não tem evidências que a sustentem. Outra sugestão é que Deus esteja aqui falando com anjos. Mas os anjos não participaram da criação do homem, nem foi o homem criado à imagem e semelhança de anjos; por isso a sugestão não é convincente. A melhor explicação é que já nos primeiros capítulos de Gênesis temos uma indicação da pluralidade de pessoas no próprio deus. Não sabemos quantas são as pessoas, e nada temos que se aproxime de uma doutrina completa da Trindade, mas implica-se que há mais de uma pessoa. O mesmo se pode dizer de Gn 3.22 ("Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal"), Gn 11.7 ("Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem") e Is 6.8 ("A quem enviarei, e quem há de ir por nós?"). (Repare a combinação de singular e plural na mesma oração na última passagem.)
Além disso, em determinadas passagens uma pessoa é chamada "Deus" ou "Senhor" e distinguida de outra pessoa também chamada de Deus. Em Salmo 45.6-7(NIV), diz o salmista: "O teu trono, ó Deus, perdurará para todo o sempre. [...] Tua amas a justiça e odeia a iniqüidade; portanto, Deus, o teu Deus, te estabeleceu acima dos teus companheiros ungindo-te com o óleo da alegria". Aqui o salmo vai além de descrever algo que poderia valer para um rei terreno, e chama o rei de "Deus" (v. 6), cujo trono perdurara "para todo o sempre". Mas então, ainda falando da pessoa chama "Deus", o autor diz que Deus, o teu Deus, te estabeleceu acima dos teus companheiros" (v. 7). Então duas pessoas distintas são denominadas "Deus" (heb. 'Elõhîm). No Novo Testamento, o autor de Hebreus cita essa passagem e a aplica a Cristo: "O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre" (Hb 1.8)
Do mesmo modo, em Salmo 110.1, fala Davi: "DIsse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés". Jesus corretamente entende que Davi se refere a duas pessoas distintas como "Senhor" (Mt 22.41-46), mas quem é o "Senhor" de Davi senão o próprio Deus? E quem poderia dizer a Deus "Assenta-te à minha direita", exceto alguém que também seja plenamente Deus? Do ponto de vista do Novo Testamento, podemos parafrasear assim esse versículo: "Deus Pai disse a Deus Filho:"Assenta-te à minha direita". Mas mesmo sem o ensinamento do Novo Testamento sobre a Trindade, parece claro que Davi estava ciente de um pluralidade de pessoas num só Deus. Jesus, é claro, compreendo a isso, mas quando pediu aos fariseus uma explicação dessa passagem, "E ninguém podia responder-lhe uma palavra; nem desde aquele dia ousou mais alguém interrogá-lo."(Mt 22.46). A menos que se disponham a admitir a pluralidade de pessoas num só Deus, os intérpretes judeus das Escrituras, mesmo hoje, não terão explicação mais satisfatória de Salmo 110.1 ( ou Gn 1.26, ou das outras passagens analisadas há pouco) do que aquela que circulava no tempo de Jesus.
Isaías 63.10 diz sobre o povo de Deus que "eles foram rebeldes e contestaram o seu Espírito Santo", dando a entender, aparentemente, tanto que o Espírito Santo é distinto do próprio Deus (é "seu Espírito Santo") quanto que esse Espírito Santo pode-se "contristar", entristecer-se, aventando assim capacidade emocionais características de uma pessoa distinta. (Is 61.1 também distingue "O Espírito do SENHOR Deus" do "SENHOR", ainda que não se atribuam qualidade pessoais ao Espírito Senhor nesse versículo.
Evidências semelhantes encontram-se em Malaquias, em que diz o Senhor: "Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim; e de repente virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais; e o mensageiro da aliança, a quem vós desejais, eis que ele vem, diz o Senhor dos Exércitos. Mas quem suportará o dia da sua vinda? E quem subsistirá, quando ele aparecer? Porque ele será como o fogo do ourives e como o sabão dos lavandeiros." (Ml 3.1-2). Aqui, novamente, aquele que fala (o SENHOR dos Exércitos") distingue-se do "Senhor, a quem vós buscais", sugerindo duas pessoas separas, que podem ambas ser chamadas "Senhor".
Em Oséias 1.7, o Senhor fala da casa de Judá: E os salvarei pelo Senhor, seu Deus", novamente sugerindo que mais da uma pessoa pode ser chamada "Senhor" (heb. Yahweh) e "Deus" ( 'Elõhîm).
E em Isaías 18.16, aquele que fala (aparentemente o servo do Senhor) diz: "Agora, o Senhor Deus me enviou a mim e o seu Espírito". Aqui o Espírito do Senhor, como o servo do Senhor, foi "enviado" pelo Senhor Deus para uma missão particular. O paralelismo entre os dois objetos de enviar ("mim" e "o seu Espírito") é compatível com a interpretação de que são pessoas distintas: parece significar mais do que meramente "o Senhor enviou a mim e o seu poder". De fato, do ponto de vista do Novo Testamento (que reconhece Jesus, o Messias, como o verdadeiro Servo do Senhor predito nas profecias de Isaías), Isaías 18.16 carrega implicações trinitárias: "Agora, o Senhor Deus me enviou a mim e o seu Espírito", se dito por Jesus, o Filho de deus, menciona as três pessoas da Trindade.
Além do mais, diversas passagens do Antigo testamento sobre o "Anjo do Senhor" subentendem uma pluralidade de pessoas em Deus. A palavra traduzida "anjo" (heb. mal'ak) significa simplesmente "mensageiro". Se esse anjo do Senhor é um "mensageiro" do Senhor, ele pe então distinto do próprio Senhor. Porém, em algumas passagens o anjo do Senhor é chamado "Deus" ou "Senhor" (ver Gn 16.13; Êx 3.2-6; 23.20-22 [repare "nele está o meu nome" no v. 21]; Nm 22.35 com 38; Jz 2.1-2; 6.11 com 14). Em outros trechos no Antigo Testamento "o Anjo do Senhor" simplesmente se refere a um anjo criado, mas pelo menos nesses textos o anjo (ou "mensageiro") especial do Senhor parece ser uma pessoa distinta e plenamente divina.
Um dos textos mais polêmicos do Antigo Testamento que poderia revelar personalidades distintas para mais de uma pessoa está em Provérbios 8.22-31. Embora a parte anterior do capitulo possa ser compreendida como meramente uma personificação da "sabedoria", com vistas a um efeito literário, mostrando a sabedoria a chamar os simples e a convidá-los a aprender, é possível argumentar que os vv. 22-31 dizem coisas sobre a "sabedoria" que parecem ir além da mera personificação. Falando do tempo em que Deus criou a terra, diz a sabedoria: "... então, eu estava com ele e era arquiteto, dia após dia, eu era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo; regozijando-me no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens (Pv 8.30-31). Atuar como "arquiteto" junto de Deus na criação indica em si mesmo a idéia de uma pessoas distinta, e as frases seguintes talvez sejam ainda mais convincentes, pois apenas pessoas reais podem "dia após dia [ser] as suas delícias" e também se alegrar no mundo e se deleitar com os filhos dos homens.
Mas se decidimos que "sabedoria" aqui se refere de fato ao Filho de Deus antes de ele se tornar homem, há uma dificuldade. Os versículos de 22-25 parecem falar da criação dessa pessoa chamada "sabedoria":
O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras.
Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra.
Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de águas.
Antes que os montes se houvessem assentado, antes dos outeiros, eu fui gerada.
Porventura não indica isso que tal "sabedoria" foi criada?
Na verdade, não. A palavra hebraica que geralmente significa "criar" (bãrã') não é usada no versículo 22; a palavra é qãnãh, que ocorre oitenta e quatro vezes no Antigo Testamento e quase sempre significa "obter, adquirir". A Almeida Revista e Atualizada é mais clara aqui: "O Senhor me possuía no início de sua obra" (Semelhante Á Versão King James; repare esse sentido da palavra em Gn 39.1; Ex 21.2; Pv 4.5, 7; 23.23; Ec 2.7; Is 1.3["possuidor"]. trata-se de um sentido legítimo e, se a sabedoria for compreendida como uma pessoa real, significaria apenas que Deus Pai começou a dirigir e a fazer uso da potente ação criadora de Deus Filho no momento do início da Criação: o Pai convocou o Filho a trabalhar com ele na obra da criação. A palavra "gerado" nos versículos 24 e 25 é um termo diferente, mas poderia carregar significado semelhante: o Pai começa a dirigir e a fazer uso da potente ação criadora do Filho na criação do universo.
Quando começa o Novo Testamento, entramos na história da vinda do Filho de Deus à terra. Era de esperar que esse grande acontecimento se fizesse acompanhar de ensinamentos mais explícitos sobre a natureza trinitária de Deus, e de fato é isso que encontramos. Antes analisar a questão com pormenores, podemos simplesmente listar várias passagens em que as três pessoas da Trindade são mencionadas juntas.
Quando do batismo de Jesus, " ... e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre ele. E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo" (Mt 3.16-17). Aqui, ao mesmo tempo, temos os três membros da Trindade realizando três ações distintas. Deus Pai fala de lá do céu; Deus Filho é batizado e depois ouve a voz de Deus Pai vinda do céu, e o Espírito Santo desse do céu para pousar sobre Jesus e dar-lhe poder para o seu ministério.
Ao final do seu ministério terreno, Jesus diz aos discípulos que eles devem ir e fazer "discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28.19). Os próprios nomes "Pai" e "Filho", baseados na família e mais comum das instituições humanas, indicam com muita força a distinção das pessoas do Pai e do Filho. E se o "Espírito Santo" é inserido na mesma frase e no mesmo nível das outras duas pessoas. difícil é evitar a conclusão de que o Espírito Santo é também, tido como pessoa e de posição igual ao do Pai e do Filho.
Quando nos damos conta de que os autores do Novo Testamento geralmente usam o nome "Deus" (gr. theos) para se referir a Deus Pai e o nome "Senhor" (gr. Kyrios) para se referir a Deus Filho, fica claro que há outro termo trinitário em 1 Coríntios 12.4-6 "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos."
Igualmente, o último versículo de 2 Coríntios é trinitário na sua expressão: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos vós. Amém." (2 Co 13.13 ou 14). Verificamos também as três pessoas mencionadas separadamente em Efésios 4. 4-6:"Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; Um só Senhor, uma só fé, um só batismo; Um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos vós."
As três pessoas da Trindade são mencionadas juntas na primeira frase de 1 Pedro: "Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo..." (1 Pe 1.2). E em Judas 20-21, lemos: "Mas vós, amados, edificando-vos a vós mesmos sobre a vossa santíssima fé, orando no Espírito Santo, Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna."
Todavia, a tradução (dentro de colchetes, significando que o texto em questão não tem apoio dos melhores manuscritos que a ARA dá de 1 Jo 5.7 não deve ser usada com esse fim. Lê-se: "Pois são três os que dão testemunho no céu: O Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e esses três são um".
O problema dessa tradução é que ele se baseia num número muito pequeno de manuscritos gregos pouco confiáveis, sendo o mais antigo desses do século XIV d.C.. As melhores versões não incluem esse trecho, mas o omitem, como o faz a grande maioria dos manuscritos gregos de todas as traduções textuais de monta, inclusive vários manuscritos bastante confiáveis dos séculos IV e C d.C., e também citações dos pais da igreja, como Ireneu (m.c. 212 d.C.), Tertuliano (m. depois de 220d.C.) e o grande defensor da Trindade, Atanásio (m. 373 d.C.).
Em certo sentido a doutrina da trindade é um mistério que jamais seremos capazes de entender plenamente. Podemos, todavia, compreender parte de sua verdade resumindo o ensinamento da Escrituras em três declarações:
1. Deus é três pessoas.
2. Cada pessoa é plenamente Deus.
3. Há só um Deus
A seção seguintes desenvolverá mais detalhadamente cada uma dessas declarações.
O fato de ser Deus três pessoas significa que o Pai não é o Filho; são pessoas distintas. Significa também que o Pai não é o Espírito Santo, mas são pessoas distintas. E significa que o Filho não é o Espírito Santo. Essas distinções se mostram em várias das passagens citadas na seção anterior, bem como em muitas outras passagens do Novo Testamento.
Jo 1.1-2 nos diz: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus.". O fato de o "Verbo" (que se revela Cristo nos v. 9-18) estar "com" Deus prova que ele é distinto de Deus Pai. Em João17.24, Jesus fala a Deus Pai da "minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo", revelando assim distinção de pessoas, compartilhamento de glória e uma relação de amor entre o Pai e o Filho antes que o mundo fosse criado.
Lemos que Jesus continua agindo como nosso Sumo Sacerdote e Advogado perante Deus Pai: "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo." (1 Jo 2.1). Cristo é aquele que "pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles."(Hb 7.25). Porém, a fim de interceder por nós perante Deus Pai, é necessário que Cristo seja um pessoa distinta do Pai.
Além disso, o Pai não é o Espírito, tampouco o Filho é o Espírito Santo. Distinguem-se em vários versículos. Diz Jesus: "Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito" (Jo 14.26). O Espírito Santo também ora ou "intercede" por nós (Rm 8.27), indicando uma distinção entre o Espírito Santo e Deus Pai, a quem se faz a intercessão.
Finalmente, o fato de o Filho não ser o espírito Santo também está indicado em várias passagens trinitárias mencionadas anteriormente, como a Grande Comissão (Mt 28.19), e em passagens que indicam que Cristo voltou ao céu e então enviou o Espírito Santo à igreja. Disse Jesus: "Todavia digo-vos a verdade, que vos convém que eu vá; porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando eu for, vo-lo enviarei." (Jo 16.7).
Alguns já questionaram se o espírito Santo é de fato uma pessoa distinta, e não simplesmente o "poder" ou a "força" de Deus em ação no mundo. Mas as evidências do Novo Testamento são bem claras e fortes. Primeiro há os diversos versículos mencionados acima, em que o Espírito Santo é revelado em coordenada relação com o Pai e o Filho ( Mt 28.19; 2 Co 12.4-6; 2 Co 13.13ou14; Ef 4.4-6; 1 Pe 1.2): como o Pai e o Filho são ambos pessoas, a expressão coordenada indica fortemente que o Espírito Santo também é uma pessoa. Depois há trechos em que o pronome masculino ele(gr. ekeinos) se refere ao Espírito Santo (Jp 14.26; 15.26; 16.13-14), o que não seria de esperar em face das regras da gramática grega, pois a palavra "espírito"(gr. pneuma) é neutra, não masculina, e a ela normalmente se alude com o pronome neutro ekeino. Além do mais, o nome consolador ou confortador (gr. parakeltos) é um termo comumente usado para falar de uma pessoa que ajuda ou dá consolo ou conselho a outra pessoa ou pessoas, mas se refere ao Espírito Santo no evangelho de João (Jo 14.16, 26; 15.23; 16.7).
Outras atividades pessoais são atribuídas ao Espírito Santo, como ensinar (Jo 14.26), dar testemunho (Jo 15.26; Rm 8.16), interceder ou orar em nome de outros (Rm 8.26-27), sondar as profundezas de Deus (1 Co 2.10), conhecer os pensamentos de Deus (2 Co 2.11), decidir conceder dons para alguns, e outros para outros (1 Co 12.11), proibir ou não permitir determinadas atividades (At 16.6-7), falar (At 8.29; 13.2; e muitas vezes no Antigo como no Novo Testamento), avaliar e aprovar um proceder sábio (At15.28) e se entristecer diante do pecado dos cristãos (Ef 4.30).
Por fim, se o Espírito Santo é interpretado meramente como o poder de Deus, e não como pessoa distinta, então várias passagens simplesmente não fariam sentido, pois nelas se mencionam tanto o Espírito Santo quanto o seu poder, ou o poder de Deus. Por exemplo, Lucas 4.14 ("Então, Jesus, no poder, regressou para Galiléia") significaria então "Jesus, no poder do poder, regressou para a Galiléia". E atos 10.38 ("Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder") significaria "Deus ungiu a Jesus com o poder de Deus e com poder" (ver também Rm 15.13; 1 Co 2.4).
Embora tantas passagens distingam claramente o Espírito Santo dos outros membros da Trindade, 2 Coríntios 3.17 se revela um versículo desconcertante: "Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.". Os interpretes muitas vezes supõem que "Senhor" aqui só pode ser Cristo, pois Paulo usa freqüentemente "Senhor" para referir a Cristo. Mas provavelmente não é esse o caso aqui, pois a gramática e o contexto nos fornecem bons argumentos para dizer que esse versículo tem melhor tradução com o Espírito Santo o sujeito: "Ora, o Espírito é o Senhor ...". Nesse caso, Paulo estaria dizendo que o Espírito Santo é também "Jave" (ou "Jeová), o Senhor do Antigo Testamento (repare o claro pano de fundo do Antigo Testamento que se revela nesse contexto, a partir do v. 7). Teologicamente, isso seria aceitável, pois sem dúvida se pode dizer qua assem como Deus Pai é "Senhor" e Deus Filho é "Senhor" (no pleno sentido de "Senhor" no Antigo Testamento como nome de Deus), também o Espírito Santo é chamado "Senhor" no Antigo Testamento - e é o Espírito Santo que nos manifesta especialmente a presença do Senhor na era da nova aliança.
Além do fato de serem as três pessoas distintas as Escrituras dão farto testemunho de cada pessoa é plenamente Deus.
Primeiro, Deus Pai é claramente Deus. Isso se evidencia desde o primeiro versículo da Bíblia no qual Deus cria o céu e a terra. É evidente em todo o Antigo e Novo Testamento, no quais Deus Pai é retratado nitidamente como Senhor soberano de tudo e onde Jesus orar ao seu Pai celeste.
Também, o Filho é plenamente Deus. Embora esse ponto seja desenvolvido com mais por menores no capítulo 26 [da Teologia Sistemática deste autor, donde tiramos este estudo] ("A Pessoa de Cristo"), podemos aqui mencionar de passagem vários trechos explícitos. João 1.1-4 afirma claramente a plena divindade de Cristo:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
Aqui, Cristo é o "Verbo", e João diz que ele estava "com Deus" e também que ele "era Deus". O texto grego repete as palavras iniciais de Gênesis 1.1 ("No princípio...") e nos lembra de que João está falando de algo que já era verdade antes que o mundo fosse criado. Deus Filho sempre foi plenamente Deus.
A tradução "o Verbo era Deus" foi contestada pelas testemunhas-de-jeová, que vertem "o Verbo era um deus", implicando que o Verbo era simplesmente um ser celestial, mas não plenamente divino. Eles justificam essa tradução salientando que o artigo definido (gr. ho, "o") não aparece antes da palavra grega theos ("Deus). Dizendo que theos deve ser traduzido como "um deus". Porém, tal interpretação nunca foi acatada por nenhum estudioso grego de lugar algum, pois é sabido que a frase segue uma regra normal da gramática grega, e ausência do artigo definido indica meramente que "Deus" é o predicado, e não o sujeito da frase. (Uma publicação recente das testemunhas-de-jeová reconhece hoje essa relevante gramatical, mas assim mesmo persiste na sua posição a respeito de João 1.1).
A incoerência da posição das testemunhas-de-jeová pode ser vista na tradução que dão ao restante do capítulo. Por diversas outras razões gramaticais, a palavra theos também dispensa o artigo definido em outros pontos do capítulo, como no versículo 6 (Houve um homem enviado por Deus"), no versículo 12 ("poder de serem feitos filhos de Deus"), no versículo 13 ("mas de Deus") e no versículo 18 ("Ninguém jamais viu a Deus"). Se as testemunhas-de-jeová fossem coerentes no seu argumento sobre a ausências do artigo definido, teriam de traduzir todos esses versículos com a expressão "um deus",mas usaram "Deus" em todos eles.
João 20.28, no seu contexto, também é uma sólida prova em favor da divindade de Cristo. Tomé duvidava do relatos dos outros discípulos, de que haviam visto Jesus ressuscitado, e disse que não acreditaria se não visse as marcas dos cravos nas mãos de Jesus e não lhe tocasse com a mão na ferida do lado (jo 20.25). Então Jesus apareceu novamente aos discípulos, estando agora Tomé com eles. Disse a Tomé: "Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a mão e põe no me lado; não seja incrédulo, mas crente"" (Jo 20.28). Aqui Tomé chama Jesus de "Deus meu". A narrativa mostra que tanto João no modo com escreveu o seu evangelho quanto o próprio Jesus aprovam o que Tomé disse e incentivam todos os que ouvirem falar de Tomé a crer nas mesmas coisas em que Tomé creu. Jesus imediatamente disse a Tomé: "Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram" (Jo 20.29). Quanto a João, esse é o momento dramático mais forte do evangelho, pois ele logo a seguir diz ao leitor - já no versículo seguinte - que esta é a razão pela qual ele o escreveu:
"Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. "(Jo 20.30-31)
Jesus fala daqueles que, mesmo sem o ver crerão, e João logo diz ao leitor que ele registrou os acontecimentos no evangelho para que todos também creiam assim, imitando Tomé na sua confissão de fé. Em outras palavras, todo o evangelho foi escrito para convencer as pessoas a imitar Tomé, que sinceramente chamou Jesus de "Senhor meu e Deus meu". Como esse é o motivo exposto por João como propósito do seu evangelho, a afirmação se reveste de autoridade.
Outras passagens afirmam a plena divindade de Jesus, como Hebreus 1, onde diz que Cristo é a "expressão exata" (gr. charakter, "reprodução exata") da natureza ou ser (gr. hypostasis) de Deus - significando que Deus Filho reproduzia o ser ou a natureza de Deus Pai em todos os aspectos: todos os atributos ou poderes que Deus Pai tem, Deus Filho também os tem. O autor ainda se refere ao Filho como "Deus" no versículo 8 ("Mas acerca do Filho: O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre") e atribui a criação dos céus a Cristo ao dizer dele: "No princípio, Senhor, lançaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos" (Hb 1.10; citando Sl 102.25). Tito 2.13 refere-se ao "nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus" e 2 Pedro 1.1 fala da "justiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo". Romanos 9.5, falando do povo judeu, diz: "Deles são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem humana de Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém" (NVI).
No Antigo Testamento, Isaías 9.6 profetiza:
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome:
Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte ...
Aplicando a Cristo, essa profecia refere-se a ele como "Deus Forte". Observe aplicação semelhante dos títulos "Senhor" e "Deus" na profecias da vinda do Messias em Isaías 40.3: "Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus", citada por João Batista na preparação para vinda de Cristo em Mateus 3.3.
Muitas outras passagens serão discutidas no capítulos 26, [da Teologia Sistemática deste autor], abaixo, mas essas já devem ser suficientes para demonstrar que o Novo Testamento claramente se refere a Cristo como Deus pleno. Como diz Paulo em Colossenses 2.9, "Porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade."
Além disso, O Espírito Santo é também plenamente Deus. Uma vez que entendemos que Deus Pai e Deus Filho são plenamente Deus, então as expressões trinitárias em versículos com Mateus 28.19 ("batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo") se revestem de relevância para a doutrina do Espírito Santo, pois mostram que o Espírito Santo está classificado no mesmo nível do Pai e do Filho. Isso se verifica quando percebemos quão impensável seria que Jesus dissesse algo como "batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do arcanjo Miguel", dando a um ser criado uma posição totalmente descabida, mesmo para um arcanjo. Os crentes de todas as épocas sempre foram batizados em nome (assumindo, portanto, o caráter) do próprio Deus. (Note também as outras passagens trinitárias mencionadas acima: 1 Co 12.4-6; 2 Co 13.14; Ef 4.4-6; 1 Pe 1.2; Jd 20-21.)
Em atos 5.3-4, Pedro pergunta a Ananias: "Por que encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo [...]? Não mentiste aos homens, mas a Deus". Segundo as palavras de Pedro, mentir ao Espírito Santo é mentir a Deus. Paulo diz em 1 Coríntios 3.16: "Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?" O templo de Deus é o local onde o próprio Deus habita, o que Paulo explica pelo fato de que o "Espírito de Deus" ali habita, aparentemente igualando o Espírito de Deus ao próprio Deus.
Davi pergunta em Salmos 139.7-8: "Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde fugirei da tua presença? Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás também." Essa passagem atribui a características divina da onipresença ao Espírito Santo, algo que não se aplica a nenhuma das criaturas de Deus. Parece que Davi faz equivaler o Espírito de Deus à presença de Deus. Ausentar-se do Espírito de Deus é ausentar-se da sua presença, mas se não há lugar para onde Davi pode fugir do Espírito de Deus, então ele sabe que aonde quer que vá terá de dizer: "Tu estás aí".
Paulo atribui a característica divina da onisciência ao Espírito Santo em 1 Coríntios 2.10-11: "Porque Deus no-las revelou pelo seu Espírito; pois o Espírito esquadrinha todas as coisas, mesmos as profundezas de Deus. Pois, qual dos homens entende as coisas do homem, senão o espírito do homem que nele está? assim também as coisas de Deus [ou os pensamentos de Deus], ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus.".
Além disso, o ato de dar novo nascimento a todo aquele que nasce de novo é obra do Espírito Santo. Disse Jesus:"... quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo" (Jo 3.5-7). Mas o ato de dar nova vida espiritual às pessoas quando se tornam cristãs é algo que só Deus pode fazer (cf. 1 Jo 3.9, "nascido de Deus"). Essa passagem portanto dá nova indicação de que o Espírito Santo é plenamente Deus.
Até aqui temos duas conclusões, ambas fartamente ensinadas em toda a Bíblia:
1. Deus é três pessoas.
2. Cada pessoa é plenamente Deus.
Se a Bíblia ensinasse somente esses dois fatos, não haveria nenhuma dificuldade lógica em emparelhá-los, pois a solução óbvia seria que existem três Deuses. O Pai é plenamente Deus, o Filho é plenamente Deus e o Espírito santo é também plenamente Deus.Teríamos um sistema com três seres igualmente divinos. Tal crença se chamaria politeísmo - ou, mais especificamente, "triteísmo", ou crença em três Deuses. Mas isso passa bem longe do que ensina a Bíblia.
As Escrituras deixam bem claro que só existe um único Deus. As três diferentes pessoas da Trindade são um não apenas em propósito e em concordância no que pensam, mas um em essência, um na sua natureza essencial. Em outras palavras, Deus é um só ser. Não existem três Deuses. Só existe um Deus.
Uma das passagens mais conhecidas do Antigo Testamento é Deuteronômio 6.4-5: "Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças."
Ó Senhor, quem é como tu entre os deuses? Quem é como tu glorificado em santidade, admirável em louvores, realizando maravilhas? (Ex 15.11),
a resposta obviamente é: "ninguém. Deus é único, e não há ninguém como ele nem pode haver ninguém como ele. De fato, Salomão ora "para que todos os povos da terra saibam que o Senhor é Deus, e que não há outro." (1 Rs 8.60).
Quando Deus fala, repetidamente deixa claro que ele é o único Deus verdadeiro; a idéia de que existem três Deuses a adorar, e não um só, seria impensável diante de declarações tão veementes. Só Deus é o únicos Deus verdadeiro, e não há nenhum outro como ele. Quando ele fala, só ele fala - não fala como um Deus dentre três que devem ser adorados. Mas diz:
Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que tu não me conheças;
Para que se saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. (Is 45.5-6).
Do mesmo modo, ele convoca toda a terra a olhar para ele:
Não há outro Deus, senão eu, Deus justo e Salvador não há além de mim.
Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro (Is 45.21-22; cf. 44.6-8).
O Novo Testamento também afirma que só há um Deus. Escreva Paulo: "Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem." (1 Tm 2.5). Paulo afirma que "Deus é um só" (Rm 3.30) e que "há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos" (1 Co 8.6). Por fim, Tiago admite que até os demônios reconhecem que só há um Deus, ainda que essa aceitação intelectual do fato não seja suficiente para salvá-los: "Tu crês que há um só Deus; fazes bem. Também os demônios o crêem, e estremecem." (Tg 2.19). Mas nitidamente Tiago afirma que "faz bem" quem crê que "Deus é um só".
Agora temos três proposições, todas elas ensinadas nas Escrituras.
1. Deus é três pessoas.
2. Cada pessoa é plenamente Deus.
3. Só há um Deus.
Ao longo de toda a história da igreja houve tentativas de encontrar uma solução simples para doutrina da Trindade pela negação de uma ou outra dessa proposições. Caso se negue a primeira proposição [1. Deus é três pessoas.], então resta-nos simplesmente o fato de que cada uma das pessoas mencionadas nas Escrituras (Pai, Filho e Espírito Santo) é Deus, e há um só Deus. Mas se não precisamos dizer que são pessoas distintas, então há uma solução fácil: não passam de nomes diferentes para uma pessoa que age de modos diversos em situações distintas. Às vezes essa pessoa se chama Pai, às vezes se chama Filho, às vezes se chama Espírito. Não temos dificuldade para compreender isso, pois sabemos por experiência própria que a mesma pessoa pode agir em dada situação como advogado (por exemplo), noutra como pai dos seus filhos e noutra como filho diante dos seus pais; a mesma pessoa é advogado, pai e filho. Mas tal solução negaria o fato de que as três pessoas sejam indivíduos distintos, de que Deus Pai envia Deus Filho ao mundo, de que o Filho ora ao Pai e de que o Espírito santo intercede junto ao Pai por nós.
Outra solução simples surge pela negação da segunda proposição [2. Cada pessoa é plenamente Deus.], ou seja, negar que algumas das pessoas mencionadas nas Escrituras são de fato plenamente Deus. Se simplesmente sustentamos que Deus é três pessoas e que só há um Deus, então podemos ser tentados a dizer que algumas dessas "pessoas" desse Deus único não são plenamente Deus, mas apenas partes subordinadas ou criadas de Deus. Essa solução seria adorada, por exemplo, por aqueles que negam a plena divindade do Filho (e do Espírito Santo). Mas, como vimos acima, essa solução teria de negar toda uma classe de ensinamentos bíblicos.
Por fim, como já observamos acima, uma solução simples poderia vir pela negação da existência de um só Deus. Mas isso resultaria na crença em três Deus, algo claramente contrário às Escrituras.
Embora o terceiro erro não seja comum, como veremos abaixo, cada um dos dois primeiros erros já apareceu num momento ou noutro da história da igreja, e ainda persiste hoje dentro de alguns grupos.
Se não podemos adotar nenhuma dessas soluções simplistas, então como juntar as três verdade bíblicas para assim sustentar a doutrina da Trindade? As pessoas já usaram várias analogias retiradas da natureza ou da experiência humana para tentar explicar essa doutrina. Embora tais analogia sejam úteis num nível elementar de compreensão, todas elas se revelam inadequadas ou ilusórias numa reflexão mais aprofundada. Dizer, por exemplo,que Deus é como um trevo de três folhas, que mesmo tendo três partes é apenas um trevo, não é satisfatório, pois cada folha apenas faz parte do trevo, e não se pode dizer que nenhuma das folhas é todo o trevo. Mas na Trindade, cada uma das pessoas não é apenas uma parte separada de Deus, mas plenamente Deus. Além disso, a folha de um trevo é impessoal e não tem portanto personalidade distinta e complexa como cada pessoa da Trindade.
Outros já usaram a analogia das três partes de uma árvore: raiz, tronco e ramos constituem uma só arvore. Mas surge um problema semelhante, pois trata-se somente de partes de uma árvore, e não se pode dizer que nenhuma dessas partes é a árvore inteira. Além do mais, nessa analogia as partes têm propriedade distintas, diferentemente das pessoas da Trindade, que possuem todos os atributos de Deus em igual medida. E a ausência de personalidade em cada uma das partes é outra deficiência.
A analogia das três formas de água (vapor, água e gelo) é também inadequada, porque: (a) nenhuma quantidade de água jamais é ao mesmo tempo todas as três formas, (b) as três formas têm propriedades ou características diferentes, (c) a analogia nada tem que corresponda ao fato de existir somente um Deus (mas existe algo como "uma só água" ou "toda a água do universo") e (d) falta o elemento da personalidade inteligente.
Outras analogias foram derivadas da experiência humana. Poder-se-ia dizer que a Trindade é como um homem que é ao mesmo tempo fazendeiro, prefeito da sua cidade e presbítero da sua igreja. Ele desempenha papéis diferentes em momentos distintos, mas é um só homem. Porém, essa analogia é bastante falha, pois só uma pessoa executa essas três atividades em momento diferentes, e o modalismo não contempla a relação pessoal entre os membros da Trindade. (Na verdade, essa analogia simples ensina a heresia chamada modalismo, discutida abaixo.)
Outras analogia retirada da vida humana é a união entre intelecto, emoções e vontade numa pessoa. Embora sejam componentes de uma personalidade, nenhum desses fatores constitui a pessoa inteira. E as partes não são de características idênticas, mas têm capacidades distintas.
Então que analogia usaremos para explicar a Trindade? Embora a Bíblia use muitas analogias derivadas da natureza e da vida para nos ensinar aspectos diversos do caráter de Deus (Deus é como uma rocha na sua fidelidade, como um pastor no seu cuidado, etc.), é interessante notar que nenhum trecho das Escrituras se acha alguma analogia que explique a doutrina da Trindade. O mais próximo que chegamos de uma analogia se encontra nos próprios títulos "Pai" e "Filho", títulos que nitidamente dizem respeito a pessoas distintas e à íntima relação que existe entre os dois numa família. Mas no plano humano, logicamente, temos dois seres totalmente distintos, nenhum deles formado de três pessoas distintas. É melhor concluir que nenhuma analogia explica adequadamente a Trindase, que todas são ilusórias em aspectos importantes.
Quando o universo foi criado, Deus Pai proferiu as potentes palavras criadoras que o gerarem; Deus Filho foi o agente divino que executou essas palavras (Jo 1.3; 1 Co 8.6; Cl 1.16; Hb 1.2) e o Espírito de Deus "pairava por sobre as águas" (Gn 1.2). Então é como seria de esperar: se os três membros da Trindade são iguais e plenamente divinos, então todos eles existiram desde a eternidade, e Deus sempre existiu eternamente como Trindade (cf. também Jo 17.5,24). Além disso, Deus não pode ser diferente do que é, pois é imutável. Portanto, parece correto concluir que Deus existe necessariamente como Trindade - não pode ser diferente do que é.
Deus é Luz
“Eu sou o SENHOR, vosso Deus; portanto, vós vos consagrareis e sereis santos, porque eu sou santo...” Levítico 11.44
Quando a Escritura chama “santo” a Deus, ou a pessoas individuais da Divindade (como ela freqüentemente faz: Lv 11.44,45; Js 24.19; 1 Sm 2.2; Sl 99.9; Is 1.4; 6.3; 41.14,16,20; 57.15; Ez 39.7; Am 4.2; Jo 17.11; At 5.3,4,32; Ap15.4), a palavra significa tudo a respeito de Deus que o coloca separado de nós e faz dele objeto de nossa reverência, adoração e temor. Ela cobre todos os aspectos de sua grandeza transcendente e perfeição moral, e, assim, é um atributo de todos os seus atributos, salientando a “Divindade” de Deus em cada ponto. Cada faceta da natureza de Deus e cada aspecto de seu caráter pode apropriadamente ser chamado santo, precisamente porque Ele o é. A essência do conceito, porém, é a pureza de Deus, que não pode tolerar qualquer forma de pecado (Hc 1.13) e, por isso, impõe aos pecadores a constante auto-contrição em sua presença (Is 6.5).
Justiça, que significa fazer em todas as circunstâncias coisas que são corretas, é uma expressão da santidade de Deus. Deus manifesta sua justiça como legislador e juiz, e também como guardador da promessa e perdoador do pecado. Sua lei moral, que requer conduta que se equipare à sua própria, é “santa, justa e boa” (Rm 7.12). Ele julga justamente, de acordo com o mérito real (Gn 18.25; Sl 7.11; 96.13; At 17.31). Sua “ira”, isto é, sua ativa hostilidade judicial ao pecado, totalmente justa em suas manifestações (Rm 2.5-16), e seus “julgamentos” específicos (castigos eqüitativos) são gloriosos e dignos de louvor (Ap 16.5,7; 19.1-4).
Toda vez que Deus cumpre a promessa de sua aliança, agindo para salvar seu povo, pratica um gesto de “eqüidade”, isto é, justiça (Is 51.5,6; 56.1; 63.1; 1 Jo 1.9).
Quando justifica os pecadores pela fé em Cristo, Ele o faz com base na justiça aplicada, isto é, o castigo de nossos pecados na pessoa de Cristo, nosso substituto; portanto, a forma tomada por sua misericórdia justificadora mostra que Ele é absoluta e totalmente justo (Rm 3.25,26), e nossa própria justificação se revela judicialmente justificada.
Quando João diz que Deus é “luz”, não havendo nele treva alguma, a imagem está afirmando a santa pureza de Deus, o que torna impossível a comunhão entre Ele e o profano intencional, e requer a busca da santidade e retidão de vida como objetivo central do povo cristão (l Jo 1.5-2.1; 2 Co 6.14-7; Hb 12.10-17). A convocação dos crentes, regenerados e perdoados que são, a praticarem uma santidade que se equipare a própria santidade de Deus, e desta forma agradando a Ele, é constante no Novo Testamento, como certamente o foi no Velho Testamento (Dt 30.1-10; Ef 4.1-5.14; 1 Pe 1.13.22). Porque Deus é santo, o povo de Deus deve também ser santo.
Jeremias 23.24: “Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o veja? —diz o SENHOR; porventura, não encho eu os céus e a terra? —diz o SENHOR”.
Deus está presente em todos os lugares. Contudo, não devemos pensar sobre ele como se ocupasse todos os espaços, porque ele não tem dimensões físicas. É como espírito que ele está em todo lugar. Ainda que isso exceda a compreensão de criaturas como nós, presas ao corpo, o próprio Deus está presente em toda parte, em sua majestade e poder. Almas necessitadas que oram a ele de toda parte no mundo estão à sua vista e recebem sua atenção pessoal. A crença na onipresença de Deus é ensinada em Sl 139.7; Jr 23.23-24; At 17.27-28. Quando Paulo fala do Cristo que subiu ao céu como enchendo todas as coisas (Ef 4.8-10), a disponibilidade de Cristo em toda parte, na plenitude do seu poder, certamente faz parte do significado. Pai, Filho e Espírito Santo são onipresentes, ainda que a presença pessoal do Filho glorificado não seja física (no corpo).
“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). Jó testifica que Deus é onipotente. Ele é o Todo-Poderoso. Deus tem poder para fazer tudo aquilo que, em sua perfeita sabedoria e vontade, ele deseja fazer. Onipotência não significa que Deus possa fazer literalmente tudo: Deus não pode pecar, não pode mentir, não pode mudar sua natureza ou negar as exigências de seu caráter santo (Nm 23.19; 1Sm 15.29; 2Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13,17). Não pode fazer um círculo quadrado, porque a noção de um círculo quadrado é contraditória. Deus não pode cessar de ser Deus. Porém tudo o que quer e promete ele pode e fará.
Teria sido um exagero de Davi dizer: “Eu te amo, ó SENHOR, força minha. O SENHOR é minha rocha, a minha cidadela, o meu libertador; o meu Deus, o meu rochedo em que me refugio; o meu escudo, a força da minha salvação, o meu baluarte” (Sl 18.1-2)?. Teria sido exagero de outro salmista declarar: “Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações” (Sl 46.1)? Teria sido um engano dizer essas coisas se Deus fosse menos que onipotente e onipresente. Porém o reconhecimento da grandeza de Deus, incluindo sua onipresença e onipotência, produz grande fé e elevado louvor.
"Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus." Salmo 90.2
As crianças, às vezes, perguntam: "Quem fez Deus ? " A resposta mais clara é que Deus nunca precisou ser feito, porque sempre existiu. Ele existe de um modo diferente do nosso: nós existimos de uma forma derivada, finita e frágil, mas nosso Criador existe como eterno, auto-sustentado e necessário. Sua existência é necessária no sentido de que não há possibilidade de ele cessar de existir.
A Auto-existência de Deus é uma verdade básica. Na apresentação que faz do "Deus Desconhecido" aos atenienses, Paulo explica que o Criador do mundo "nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais"(Atos 17.23-25).
O Criador tem vida em si mesmo e tira de si mesmo a energia infindável e de nada necessita. A independente auto-existência de Deus é uma verdade claramente afirmada na Bíblia(Ver Salmos 90. 1-4, 102.25-27; Isaías 40.28-31; João 5.26; Apocalipse 4.10).
Na teologia, muitos erros são resultados da suposição de que as condições e limites de nossa própria existência finita se aplicam a Deus. Na vida de fé, podemos também facilmente empobrecer-nos, se alimentarmos uma idéia limitada e pequena a respeito de Deus. A doutrina da auto-existência de Deus é um anteparo e defesa contra esses erros. O princípio de que só Deus existe por si mesmo o distingue de toda criatura e é o fundamento daquilo que pensamos a respeito dele.
Saber que a existência de Deus é independente protege a nossa compreensão a respeito da grandeza dele e, portanto, tem claro valor prático para a nossa saúde espiritual. ( Bíblia de Estudo de Genebra)
Deus é auto-existente, isto é, ele tem em Si mesmo a base da Sua existência. às vezes esta idéia é expressa dizendo-se que Ele é a causa sui (a Sua própria causa), mas não se pode considerar exata esta expressão, desde que Deus é o não causado, que existe pela necessidade do Seu próprio Ser e, portanto, necessariamente. O homem, por outro lado, não existe necessariamente, e tem a causa da sua existência fora dele próprio. A idéia da auto-existência de Deus era geralmente expressa pelo termo aseitas(asseidade), significando auto-originado, mas os teólogos reformados em geral o substituíram pela palavra independentia (independência), expressando com ela somente que é independente em Seu Ser, mas também que é independente em tudo mais: em Sua virtudes, decretos, obras, e assim por diante. Pode-se dizer que há um tênue vestígio desta perfeição na criatura, mas isto só pode significar que a criatura, conquanto absolutamente depende, tem sua existência própria e distinta. Mas, naturalmente, longe está de ser auto-existente.
Este atributo de Deus é reconhecido geralmente, e está implícito nas religiões pagãs e no Absoluto da filosofia. Quando se concebe o Absoluto como a base última e auto-existente de todas as coisas, que entra voluntariamente em várias relações com outros seres, pode ser identificado com o Deus da teologia. Como o Deus auto-existente, Ele não só é independente, como também faz tudo depender dele. Esta auto-existência de Deus acha expressão no nome Jeová. É somente como o Ser auto-existente e independente que Deus pode dar a certeza de que permanecerá eternamente o mesmo, com relação ao Seu povo.
Encontram-se indicações adicionais disso na afirmação presente em Jo 5.26, "Porque, como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo;"; na declaração de que Ele é independente de todas as coisas e que todas as coisas só existem por meio dele, Sl 94.8s; Is 40.18S; At 7.25; e nas afirmações que implicam que Ele é independente em Seu pensamento, Rm 11.33,34, em Sua vontade, Dn 4.35; Rm 9.19; Ef 1.5; Ap 4.11; e em Seu conselho, Sl 33.11. ( Louis Berkhof, Teologia Sistemática , pg. 61, Ed. Cep)
“Mas ao fim daqueles dias, eu, Nabucodonosor, levantei os olhos ao céu, tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei, e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?”. Daniel 4:34,35:
A afirmação de que Deus é absolutamente soberano na criação, na providência e na salvação é básica à crença bíblica e ao louvor bíblico. A visão de Deus reinando de seu trono é repetida muitas vezes (1Rs 22.19; Is 6.1; Ez 1.26; Dn 7.9; Ap 4.2; conforme Sl 11.4; 45.6; 47.8-9; Hb 12.2; Ap 3.21). Somos constantemente lembrados, em termos explícitos, que o SENHOR (Javé) reina como rei, exercendo o seu domínio sobre grandes e pequenos, igualmente (Ex 15.18; Sl 47; 93; 96.10; 97; 99.1-5; 146.10; Pv 16.33; 21.1; Is 23.23; 52.7; dn 4.34-35; 5.21-28; 6.26; Mt 10.29-31). O domínio de Deus é total: ele determina como ele mesmo escolhe e realiza tudo o que determina, e nada pode deter seu propósito ou frustrar os seus planos. Ele exerce o seu governo no curso normal da vida, bem como nas mais extraordinárias intervenções ou milagres.
As criaturas racionais de Deus, angélicas ou humanas, gozam de livre ação, isto é, têm o poder de tomar decisões pessoais quanto àquilo que desejam fazer. Não seríamos seres morais, responsáveis perante Deus, o Juiz, se não fosse assim. Nem seria possível distinguir – como as Escrituras fazem – entre os maus propósitos dos agentes humanos e os bons propósitos de Deus, que soberanamente, governa a ação humana como meio planejado para seus próprios fins (Gn 50.20; At 2.23; 13.26-39). Contudo, o fato da livre ação nos confronta com um mistério. O controle de De3us sobre os nossos atos livres – atos que praticamos por nossa própria escolha – é tão completo como o é sobre qualquer outra coisa. Mas não sabemos como isso pode ser feito. Apesar desse controle, Deus não é e não pode ser autor do pecado. Deus conferiu responsabilidade aos agentes morais, no que concerne aos seus pensamentos, palavras e obras, segundo a sua justiça. O Sl 93 ensina que o governo soberano de Deus (a) garante a estabilidade do mundo contra todas as forças do caos (vs. 1-4); (b) confirma a fidedignidade de todas as declarações e ensinos de Deus (v. 5) e (c) exige a adoração do seu povo (v. 5). O salmo inteiro expressa alegria, esperança e confiança no Todo-Poderoso.
O HOMEM TENDE A NUTRIR posições diferentes sobre o mesmo assunto, dependendo das circunstâncias. Pode, por exemplo, defender a supremacia da lei, até que a tenha quebrado, ou pode sustentar determinados princípios liberais ou conservadores, desde que a família não esteja em jogo etc. À tendência à subjetividade é maior que se imagina ou se estaria dispostos a admitir.
A doutrina da soberania de Deus é facilmente objeto de posicionamentos contraditórios.1 Abordar essa questão parece diminuir nossa autoconfiança e suposta autonomia. Gostamos de alardear nossa liberdade e capacidade de escolha e persuasão, crendo ser melhor deixar esse assunto engavetado. No entanto, quando nos vemos sem recursos e perspectivas favoráveis , sem saber o que fazer, podemos, sem talvez nos dar conta, contentar-nos com uma fé singela no cuidado de Deus, podendo então dizer: “Deus é soberano, ele sabe o que faz,” “Nada acontece por acaso .....” . Calvino captou bem isso: ”Mesmo os santos precisam sentir-se ameaçados por um total colapso das forças humanas, a fim de aprenderem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de Deus”.2
Afinal, Deus é ou não soberano? Essa doutrina parece ser uma das mais repudiadas pelo homem natural, e, ao mesmo tempo, é a mais consoladora para os que crêem em Jesus.
Uma das grandes dificuldades dos homens em todos os tempos é deixar Deus ser Deus. Estamos dispostos a fabricar deuses para que possam cobrir as brechas de nossa compreensão, mas quando não, Deus é invocado para justificar crenças, expectativas e, ao mesmo tempo, a falta de fé.
No Antigo Testamento, os judeus insensíveis aos próprios pecados tomaram o aparente silêncio de Deus como aprovação tácita de seus erros; pensavam que o Senhor fosse igual a eles. No entanto, o todo poderoso exporia diante deles seus delitos: “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te argüirei e porei tudo à vista” (SI 50:20). Aliás, os homens estão dispostos a reconhecer espontaneamente diversas virtudes em Deus, como o amor, graça, perdão, provisão etc. Soberania, jamais.3
A. W. Pink (1886-1952) entende que “negar a soberania de Deus é entrar em um caminho que, seguindo até a sua conclusão lógica, leva a manifesto de ateísmo”.4 A dificuldade está em reconhecer a Deus como o Senhor que reina. A Bíblia, por sua vez, desafia-nos a aprender com ela a respeito de Deus. O nosso Deus, entre tantas perfeições, é soberano. Sem esse atributo, ele não seria Deus.5 No entanto, Jó demonstra a dificuldade dessa compreensão ao indagar: “Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá? “ (Jó 26:14).
Quando nossa independência depende de algo alheio ao nosso controle, nossa suposta capacidade de decidir livremente está ameaçada ou sofre de limitações que podem ser bastante comprometedoras.
Na realidade, somente em Deus há a autonomia total e absoluta.
Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: “Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quando Ele diz: ‘eu farei’, o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e Sua vontade, não a vontade do homem, será feita”.6 Deus se apresenta nas escrituras como todo-poderoso (onipotente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme sua vontade (SI 115:3; 135:6; Is 46:10; Dn 4:35; Ef 1:11).Entretanto, ele também se mostra coerente com as demais de suas perfeições, ou seja, exercita eu poder em harmonia com todas as perfeições de sua natureza (2Tm 2:13); sua vontade é eticamente determinada . A soberania de Deus se manifesta no fato de ele poder fazer tudo o que faz (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o poder ordenado. Ele exerce o poder no cumprimento do que decretou e nas obras da providência. Aliás, essas obras consistem a execução temporal dos decretos eternos de Deus. Contudo, o que ele realiza não serve de limites para seu poder. “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverte João Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas não da fé de Abraão (Mt 3:9). Contudo, Deus não fez isso. Por quê? Simples: porque não determinou.
Ele tem total domínio sobre seu poder, estando este sob seu controle; caso contrário, Deus deixaria de ser livre. “Ele tem poder sobre seu poder”.7 Assim, o poder de Deus é essencialmente harmônico e compatível com todo seu ser. Por isso, a Bíblia declara que Deus não pode mentir (Nm 23:19; 1Sm 15:29; Tt 1:2; Hb 6:18); negar-se (2Tm 2:13); mudar (Tg 1:17); pecar (Tg 1:13).
O poder de Deus é soberanamente livre. Deus não tem compromisso com terceiros. A onipotência faz parte da sua essência; por isso, para ele, não há impossíveis; apesar de qualquer oposição ele executa seu plano; tudo o que deseja, pode realizar (Mt 19:26; Jó 23:13). No entanto, Deus não precisa exercitar seu poder para ser o que é.8
Quando a Bíblia menciona o poder soberano de Deus, refere-se à sua própria natureza, e não a um estado determinado por fatores externos, tais como dinheiro, fama, prestígio etc. Ele é o próprio Poder. Por isso, manifesta-se poderosamente (SI 62:11). Ele é tão eterno quanto seu poder e sempre foi e sempre será o que é existindo eternamente por si próprio. A Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte do fato consumado de que Deus existe, manifestando seu poder em atos criativos (Gn 1:1).
Pelo fato de Deus ser todo poderoso, pode determinar livremente suas ações, o que de fato faz, manifestando tal poder nos seus decretos.9
Deus tem eternamente diante de si uma infinidade de possibilidades de “decisões” sobre todas as coisas; entretanto, ele “decidiu”10 fazer do modo como fez sem influencia de ninguém, porque não necessita de conselhos (Is 40:13-14; Rm 11:33-36). O plano de Deus é sempre o melhor, porque ele sabia e livremente o escolheu!
Deus executa se plano através do seu poder, conforme sua vontade(Mt 8:2; Jr 32:17). Não podemos marcar hora e lugar para ele agir. Deus opera como e quando quer, dentro de suas deliberações. Ele age sempre conforme seu decreto, não dependendo de nenhum meio externo para realizá-lo, a menos que ele assim o determine. Ontologicamente Deus não precisa de nada fora de si mesmo. Ele se basta a si. O Senhor não precisa de meios para executar o que quer.
Contudo, por sua graça, Deus se agencia também através das causas externas para concretizar seu propósito. Por exemplo: ele poderia se quisesse salvar a todos os homens independentemente da Bíblia e da fé em Cristo; essa não é a sua forma ordinária de agir, porque sábia e livremente estabeleceu o critério de salvação, que é sempre pela graça, que opera mediante a fé através da palavra (Rm 10:17; Ef 2:8).
Deus sempre age de forma compatível com sua perfeita justiça. Jesus Cristo se encarnou a fim de que Deus pudesse ser justo e ao mesmo tempo o justificador dos que confiam nele para salvação (Rm 3:26). Ele se tornou justiça, santificação e redenção para os crentes (1Co 1:30). Sem a graça de Deus, amparada no sacrifício de Cristo, ninguém será salvo!
Deus tem poder para executar toda sua deliberação. Ele é o Todo poderoso (Gn 17:1), e nenhum dos seus planos podem ser frustrados (Jó 42:2). Ele determinando, quem o impedirá? A Bíblia é poderosa no cumprimento do que Deus se propôs, por que provém do onipotente (leia Is 14:24-27).
Algumas pessoas raciocinam erroneamente: “Se Deus é Soberano, livre e todo-poderoso, pode, conforme sua vontade, mudar ‘as regras do jogo’, modificando as leis, seus princípios de ação, seus critérios; enfim, alterar o que ele mesmo revelou e fez registrar na sua palavra”. É assim que age o “Soberano” de Thomas Hobbes (1588-1679): “... o soberano de uma república, seja ele uma assembléia ou um homem, não está absolutamente sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode, quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomodam e fazendo novas”11 Apesar de não ser apreciável, esse raciocínio é freqüente.
Quem pensa dessa forma, em geral, tem em mente a ação do homem como modelo, tomando-o como parâmetro para uma comparação, como se o “homem fosse à medida de todas as coisas” (esse foi o mesmo equívoco de muitos gregos na antiguidade). A história tem demonstrado que o poder tende a corromper.
Diante disso, surgem algumas questões: Afinal, Deus poderia fazer tudo isso ou não? Ele estaria sujeito a corrupção resultante do mau uso do seu poder? Se esse poder pertencesse a um homem, deveríamos temer. Entretanto, com Deus é diferente. Os homens são tão fracos em sua condição de poderosos que não conseguem controlar seus ímpetos; por isso, agem por paixões as mais variadas, tais como: preconceito, vaidade, ódio, interesse etc. Deus, no entanto, é tão poderoso que estabelece limites para si mesmo! Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não pretendemos estabelecer limites para Deus, mas reconhecer os próprios limites ou critérios que ele declarou a respeito de si em sua relação consigo e com o universo. Esses critérios são decorrentes das suas perfeições, pois se Deus é perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso e santo.
Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições a fim de que pudéssemos confiar nele e proclamar suas virtudes (Mt 3:6; 1Pe 2:9-10). O poder de Deus está sob o controle de sua sábia e santa vontade: “Deus pode fazer tudo o que ele deseja, porém ele não deseja fazer tudo o que pode”12 (Ex 3:14; Nm 23:19; 1Sm 15:29; At 4:12; 2Tm 2:13; Hb 6:18; Tg 1:13,17). A. W. Pink declarou: “Deus é lei para si próprio, de modo que tudo quanto ele faz é justo.” 13
O poder absoluto de Deus não é incoerente com sua essência. A vontade de Deus é santa. Não há propósitos e atitudes contraditórios no Senhor. O soberano poder de Deus somente é limitado pelo absurdo ou pelo autocontraditório e por ações imorais. John M. Frame afirmou: “Deus é padrão para a moralidade humana, assim ele não pode ser menos que perfeito em sua santidade, bondade e retidão.” 14 Ele não pode realizar coisas auto-excludentes, como deixar de ser Deus ou ser diferente de si mesmo. Seu poder é executado em completa harmonia com sua perfeita dignidade; enfim. Com seu caráter sábio e santo. A perfeição da natureza de Deus permeia suas obras. Deste modo, suas promessas sempre serão cumpridas.15 Bavink resumiu bem esse ponto:
A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua bondade e a todos seus atributos. [...] Sua soberania é uma soberania de ilimitado poder, porém é também uma soberania de sabedoria e graça. Ele é Rei e Pai ao mesmo tempo.
A palavra ira significa "um intenso sentimento de ódio ou rancor". Ódio é definido como "aversão intensa"; rancor é "mágoa guardada por uma ofensa ou um mal recebido". Assim é a ira. E a Bíblia nos diz que a ira é um dos atributos divinos.
O hábito moderno na maioria das igrejas é falar pouco sobre esse assunto. Quem ainda crê na ira de Deus (nem todos o fazem) fala pouco sobre ela, e talvez pense pouco também sobre isso. Em uma época que se tem vendido vergonhosamente aos deuses da ganância, orgulho, sexo e egoísmo, a Igreja apenas emite murmúrios sobre a bondade de Deus, e quase nada enuncia sobre seu julgamento. Quantas vezes você ouviu falar a respeito disso no último ano. Ou, se você é ministro, pregou algum sermão sobre a ira de Deus? Quanto tempo faz que um cristão mencionou diretamente esse assunto no rádio ou na televisão, ou em pequenos sermões de meia coluna que aparecem em alguns jornais e revistas? (E se alguém o fizesse, quanto tempo passaria até que alguém lhe pedisse que escrevesse novamente sobre o assunto?).
O fato é que o assunto da ira divina tornou-se praticamente um tabu na sociedade moderna, e os cristãos em geral aceitaram essa definição e se condicionaram a nunca levantar o assunto.
Poderíamos perfeitamente perguntar se essa atitude está correta, já que a Bíblia se comporta de modo bem diferente. Não é possível imaginar que o julgamento divino fosse um assunto muito popular; entretanto, os escritores bíblicos se referem a ele constantemente. Uma das coisas mais impressionantes sobre a Bíblia é o vigor com que os dois Testamentos destacam a realidade e o terror da ira de Deus: "Um estudo da concordância mostrará que nas Escrituras há mais referências à cólera, fúria e ira de Deus do que ao seu amor e bondade".1
A Bíblia afirma que Deus é tão bom para aqueles que confiam nele, como é terrível para os que não confiam:
O Senhor é Deus zeloso e vingador! O Senhor é vingador! Seu furor é terrível! O Senhor executa vingança contra os seus adversários, e manifesta indignação contra os seus inimigos. O Senhor é muito paciente, mas o seu poder é imenso, o Senhor não deixará impune o culpado. [...] Quem pode resistir à sua indignação? Quem pode suportar o despertar de sua ira? O seu furor se derrama como fogo, e as rochas se despedaçam diante dele. O Senhor é bom, um refúgio em tempos de angústia. Ele protege os que nele confiam [...] expulsará os seus inimigos para a escuridão. Naum 1:2-8
A expectativa de Paulo era de que o Senhor Jesus um dia aparecerá "em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder. Isso acontecerá no dia em que ele vier para ser glorificado em seus santos" (2Ts 1:7-10).
Essa passagem é suficiente para lembrar que a ênfase de Naum não é peculiar ao Antigo Testamento. Na realidade, ao longo de todo o Novo Testamento "a ira de Deus", "a ira", ou simplesmente "ira" são termos quase técnicos para a ação divina retributiva, qualquer que seja o meio empregado, contra quem o desafiou (v. Rm 1:18; 2:5; 5:9; 12:19; 13:4,5; lTs 1:10; 2:16; 5:9; Ap 6:16,17; 16:19; Lc 21:22-24 etc).
A Bíblia também não nos apresenta a ira de Deus apenas por meio de declarações gerais como as citadas. A história bíblica, como vimos no último capítulo, proclama em alta voz tanto a severidade como a bondade de Deus. Assim como o O peregrino2 pode ser tido como um livro a respeito dos caminhos que levam ao inferno, a Bíblia poderia ser chamada "o livro da ira de Deus", pois está repleta de narrativas da retribuição divina, desde a maldição e expulsão de Adão e Eva em Gênesis 3 até a derrota da Babilônia e o grande tribunal de Apocalipse 17,18 e 20.
O tema da ira de Deus é claramente usado sem nenhuma inibição pelos escritores bíblicos. Por que deveríamos senti-la então? Por que nos sentiríamos obrigados a silenciar sobre o assunto quando a Bíblia trata dele? O que nos deixa atrapalhados e constrangidos quando surge o assunto, fazendo-nos correr para abafá-lo, evitando discuti-lo quando nos perguntam sobre ele? O que está por trás de nossa hesitação e dificuldade?
Não estamos pensando agora em quem recusa a idéia da ira divina por não estar preparado para levar a sério qualquer parcela da fé bíblica. Ao contrário, pensamos nos muitos que se consideram "de dentro", crendo firmemente no amor e na piedade de Deus, na obra redentora do Senhor Jesus Cristo, seguidores resolutos das Escrituras nos demais assuntos e, no entanto, vacilam quando esta questão é levantada. Qual o verdadeiro problema neste ponto?
A raiz de nossa infelicidade parece ser a inquietante suspeita de que idéias sobre a ira sejam de alguma forma indignas de Deus. Para alguns, por exemplo, "ira" sugere perda do autocontrole, o ato de "ver tudo vermelho", o que, em parte, se não no todo, é puramente irracional. Para outros, sugere o furor da impotência consciênte, o orgulho ferido, ou simplesmente mau gênio. Certamente, dizem, seria errado atribuir a Deus atitudes como essas.
A resposta é: de fato seria, mas a Bíblia não nos pede que façamos isso. Parece haver aqui um mal-entendido quanto à linguagem antro-pomórfica das Escrituras, isto é, a descrição das atitudes e emoções de Deus em termos comumente usados para se referir aos seres humanos. A base dessa prática é o fato de que Deus fez o ser humano a sua imagem, assim nossa personalidade e nosso caráter são mais semelhantes à natureza de Deus que qualquer outra coisa conhecida. Entretanto, quando as Escrituras falam de Deus antropomorficamente, não implica que as limitações e imperfeições características das pessoas, criaturas pecadoras, pertençam também às qualidades correspondentes de nosso santo Criador; ao contrário, tem-se por certo que isso não acontece.
Assim, o amor divino, como a Bíblia o vê, nunca leva Deus a agir insensata, impulsiva e imoralmente, como seu correlato humano muito freqüentemente nos leva. Do mesmo modo, a ira de Deus na Bíblia jamais é caprichosa, auto-indulgente, irritável e moralmente ignóbil, como em geral é a ira humana. Ao contrário, a ira de Deus é a reação justa e necessária à perversidade moral. Deus só se ira quando a situação o exige.
Mesmo entre os seres humanos, há o que chamamos indignação justa, embora talvez seja raramente encontrada. Entretanto toda indignação de Deus é justa. Um Deus que tivesse tanto prazer no mal quanto no bem seria um Deus bom? Um Deus que não reagisse contra o mal em seu mundo seria moralmente perfeito? É claro que não. Pois é exatamente esta reação contra o mal, parte necessária da perfeição moral, que a Bíblia tem em vista quando fala da ira de Deus.
Para outros então, imaginar sobre a ira de Deus sugere crueldade. Pensam, talvez, no que se conta sobre o famoso sermão de Jonathan Edwards, Pecadores nas mãos de um Deus irado, usado para levar ao despertamento a cidade de Enfield, na Nova Inglaterra, em 1741. Nesse sermão, Edwards, ao desenvolver o tema de que "os homens impenitentes estão detidos nas mãos de Deus por cima do abismo do inferno",3 usou da mais vivida imagem da fornalha ardente para levar sua congregação a sentir o horror de sua situação e reforçar assim sua conclusão: "Portanto, todo aquele que está fora de Cristo desperte agora e fuja da ira vindoura".4
Qualquer pessoa que leu esse sermão saberá que Augustus H. Strong, o grande teólogo batista, estava certo quando salientou que as imagens apresentadas por Edwards, embora claramente focalizadas, não passavam de imagens. Ou seja, que Edwards "não considera o inferno um lugar composto de fogo e enxofre, mas uma consciência culpada e acusada de falta de santidade e separação de Deus, as quais são simbolizadas pelo fogo e pelo enxofre".5 Mas isto não satisfaz inteiramente as críticas feitas a Edwards de que o Deus capaz de infligir uma punição que requer tal linguagem descritiva deve ser um monstro terrível e cruel.
Isto tem fundamento? Duas considerações bíblicas mostram que não.
Em primeiro lugar, a ira de Deus na Bíblia é sempre judicial, isto é, a ira do juiz aplicando a justiça. A crueldade é sempre imoral, mas a pressuposição explícita de tudo o que vemos na Bíblia — e no sermão de Edwards com respeito ao assunto — sobre os tormentos de quem experimentará a plenitude da ira de Deus é que cada um recebe exatamente o que merece. O "dia da ira", diz Paulo, é também o dia "quando se revelará o seu justo julgamento. Deus 'retribuirá a cada um conforme o seu procedimento'" (Rm 2:5,6). O próprio Jesus, que na realidade tinha mais para dizer sobre este assunto do que qualquer outra figura do Novo Testamento, salientou que a recompensa seria proporcional ao merecimento individual.
Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo receberá poucos açoites. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado muito mais será pedido. Lucas 12:47,48
Diz Edwards no sermão já citado: Deus "fará que sofram na medida exata que sua rigorosa justiça vier a requerer";6 mas é exatamente esse "estritamente exigido pela justiça", ele insiste, que será tão doloroso para os que morrem na descrença. Se se perguntar: pode a desobediência ao Criador realmente merecer um castigo tão grande e doloroso? Qualquer pessoa que já esteja convicta de seu pecado sabe sem sombra de dúvida que a resposta é afirmativa, e sabe também que aqueles cuja consciência não foi ainda despertada para considerar, como disse Anselmo,7 "como o pecado é pesado" não estão qualificados para opinar.
Em segundo lugar, a ira de Deus na Bíblia é algo que as pessoas escolhem por si mesmas. Antes de o inferno ser uma experiência imposta por Deus, é a condição pelo qual a pessoa optou, afastando-se da luz que Deus faz brilhar em seu coração para dirigi-lo por si. João escreveu: "quem não crê [em Jesus] já está condenado, por não crer no nome do Filho Unigênito de Deus". E continuou explicando: "Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram as trevas, e não a luz, porque as suas obras eram más" (Jo 3:18,19). É exatamente isso o que João quer dizer: o ato decisivo da condenação sobre os perdidos reside no juízo auto-imposto pela rejeição da luz que os alcança em Jesus Cristo e por meio dele. Em última análise, tudo o que Deus faz subseqüentemente, aplicando a ação judicial ao descrente, é com a finalidade de mostrar-lhe a conseqüência total da escolha que fez e levá-lo a senti-la.
A escolha básica sempre foi e continua sendo simples: responder à intimação "Venham a mim [...] Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim" (Mt 11:28,29), ou não atendê-la; "salvar" sua vida evitando a censura de Jesus e resistindo a sua ordem para assumir o controle da mesma ou "perdê-la" negando a si mesmo, carregando sua cruz, tornando-se discípulo, deixando que Jesus atue em sua vida como lhe aprouver. No primeiro caso, Jesus nos diz, podemos ganhar o mundo, mas não tiraremos nenhum proveito disso, pois perderemos a alma, enquanto, no segundo caso, perdendo a vida por amor a ele, a encontraremos (Mt 16:24-26).
O que significa, então, perder a alma? Para responder a essa pergunta Jesus usa suas figuras solenes: Geena ("inferno", em Mc 9:47 e em outros dez textos do Evangelho), o vale fora de Jerusalém onde o lixo era queimado; o verme que não morre, imagem, ao que nos parece, da dissolução contínua da personalidade mediante a consciência acusadora; fogo, pela agonizante consciência do desprazer de Deus; trevas exteriores, pelo conhecimento da perda, não apenas de Deus, mas de tudo o que é bom e tudo o que torna a vida digna de ser vivida; ranger de dentes pela autocondenação e repulsa íntima.
Estas coisas são, sem dúvida, terrivelmente sombrias, embora os que estão convencidos do pecado conheçam um pouco de sua natureza. Tais punições, contudo, não são arbitrárias, ao contrário, representam o desenvolvimento consciente rumo à situação que a pessoa escolheu para si. O descrente preferiu ser independente, sem Deus, desafiando-o, tendo-o contra si, e terá, então, o que prefere. Ninguém permanecerá sob a ira de Deus a menos que o queira. A essência da ação divina na ira é dar às pessoas o que escolheram, com todas suas implicações; nada mais e nada menos. A presteza de Deus em respeitar a escolha humana em toda a extensão pode parecer desconcertante e mesmo aterradora, mas é claro que sua atitude aqui é essencialmente justa, e muito diferente do sofrimento infligido arbitrária e irresponsavelmente — o que consideramos crueldade.
Precisamos, portanto, lembrar que a chave da interpretação para muitas passagens bíblicas, no geral majoritariamente figuradas, que mostram o Rei e Juiz divino agindo contra o ser humano com ira e vingança, está em compreender que o que Deus faz nada mais é que confirmar o veredicto já proclamado sobre si mesmos por aqueles aos quais "visitou", tendo em vista o caminho que resolveram seguir. Isto aparece na narrativa do primeiro ato da ira de Deus para com ser humano, em Gênesis 3, onde vemos que Adão resolveu por si mesmo se esconder de Deus e sair de sua presença antes mesmo que Deus o expulsasse do jardim; e esse mesmo princípio é usado em toda a Bíblia.
O tratamento clássico dado no Novo Testamento à ira divina é encontrado na carta aos romanos, que Lutero e Calvino consideravam a porta de entrada da Bíblia e que na verdade contém referências mais explícitas sobre a ira de Deus que as encontradas nas demais cartas de Paulo. Terminaremos este capítulo analisando o que esta carta nos diz sobre isso: um estudo que servirá para esclarecer alguns pontos já estudados.
Em Romanos a ira de Deus denota sua ação resoluta na punição do pecado. É tanto a expressão de uma atitude pessoal e emocional do Jeová triúno quanto é de seu amor pelos pecadores: é a manifestação ativa de seu ódio à descrença e à perversidade moral. A expressão ira pode referir-se especificamente à futura manifestação do auge desta aversão no "dia da ira" (2:5; 5:9), mas pode também se referir aos acontecimentos e processos atuais da providência nos quais se pode discernir a retribuição ao pecado. Assim, a autoridade que condena os criminosos é "serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal" (13:4). A ira de Deus é sua reação ao nosso pecado e "a Lei produz a ira" (4:15) porque ela incita o pecado latente em nós e multiplica a transgressão, comportamento que evoca a ira (5:2; 7:7-13). Como reação ao pecado, a ira de Deus é expressão de sua justiça.
Paulo rejeita, indignado, a sugestão de que "Deus é injusto por aplicar a sua ira" (3:5). O apóstolo descreve as pessoas "preparadas para a perdição" como "vasos da ira", isto é, objetos da ira, no mesmo sentido que ele em outra parte as chama de servos do mundo, da carne e do demônio, "merecedores da ira" (Ef 2:3). Tais pessoas simplesmente por serem o que são atraem sobre si a ira de Deus.
"Porquanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça" (1:18). O tempo do verbo no presente — "é revelada" — implica manifestação constante, agindo durante todo o tempo; "dos céus", que atua como contraste ao "Evangelho" nos versículos anteriores, implica a manifestação universal atingindo quem não foi ainda alcançado pelo Evangelho.
Como se processa a revelação? Ela é impressa diretamente na consciência de cada pessoa: os que Deus "entregou a uma disposição mental reprovável" (1:28) para se entregar ao mal entretanto conhecem "o justo decreto, de que as pessoas que praticam tais coisas merecem a morte" (1:32). Nenhuma pessoa é inteiramente ignorante sobre o julgamento futuro. Essa revelação imediata é confirmada pela palavra revelada no Evangelho, que nos prepara para as boas novas falando-nos a respeito das más notícias do "dia da ira de Deus, quando se revelará o seu justo julgamento" (2:5).
E isso não é tudo. Aos que têm olhos para ver, os sinais da ira de Deus aparecem aqui e agora em situações reais da humanidade. Em todas as partes os cristãos observam um tipo de degeneração agindo constantemente — do conhecimento de Deus à adoração do que não é Deus, e da idolatria à imoralidade da pior espécie, de modo que cada geração cria uma nova safra com a "impiedade e a injustiça dos homens". Neste declínio temos de reconhecer a ação presente da ira divina, em um processo de rigidez judicial e cancelamento de restrições pelo qual as pessoas se entregam a suas preferências corruptas e põem em prática, cada vez mais desinibidamente, a concupiscência de seu coração pecador. Paulo descreve o processo, como ele conhecia a partir da Bíblia e do mundo de seus dias, em Romanos 1:19-31. As frases principais são: "Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos do seu coração", "Deus os entregou a paixões vergonhosas", "ele os entregou a uma disposição mental reprovável" (1:24,26,28).
Se você quer a prova de que a ira de Deus, revelada como um fato em sua consciência, já está agindo como uma força no mundo, Paulo lhe diria que basta olhar a seu redor. Você verá a que tipo de coisas Deus entregou os homens. Hoje, 21 séculos após sua carta ter sido escrita, quem poderá desmentir suas teses?
Nos três primeiros capítulos de Romanos, Paulo está preocupado em lançar-nos a pergunta: se "a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens", e "o dia da ira virá", quando Deus "recompensará cada um conforme as suas obras", como podemos escapar de tal desastre? A questão nos oprime porque estamos todos "debaixo do pecado"; "Não há nenhum justo, nem um sequer"; "Todo o mundo" está "sob o juízo de Deus" (3:9,10,19).
A lei não nos pode salvar, pois seu único efeito é estimular o pecado e nos mostrar como estamos longe de cumprir a justiça. A pompa exterior da religião também não nos pode salvar, assim como a circuncisão não pode salvar o judeu. Haverá então algum livramento da ira futura? Existe, e Paulo sabe disso. "Como agora fomos justificados por seu sangue", Paulo proclama, "muito mais ainda, por meio dele, seremos salvos da ira de Deus!" (5:9). Sangue de quem? O sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado. E o que quer dizer "justificado"? Significa ser perdoado e aceito como justo. Como somos justificados? Pela fé, isto é, pela confiança total na pessoa e obra de Jesus. E como o sangue de Jesus, sua morte sacrificial, constitui a base da justificação? Paulo explica isso em Romanos 3:24,25, onde ele fala da "redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue". Que é propiciação? É o sacrifício que afasta a ira pela expiação do pecado e pelo cancelamento da culpa.
Isto, como veremos mais detalhadamente adiante, é o verdadeiro núcleo do Evangelho: que Jesus Cristo, pela virtude de sua morte na cruz como nosso substituto, levando nossos pecados, "é a propiciação pelos nossos pecados" (1Jo 2:2). Entre nós, os pecadores, e as nuvens carregadas da ira divina, levanta-se a cruz do Senhor Jesus. Se somos de Cristo, pela fé, então estamos justificados pela sua cruz, e a ira não nos atingirá quer aqui quer no futuro. Jesus "nos livra da ira vindoura" (1Ts 1:10).
A verdade, sem dúvida alguma, é que o assunto da ira divina no passado foi usado especulativa, irreverente e mesmo maldosamente. Não há dúvida de que houve quem pregasse sobre a ira e a maldição com os olhos secos e sem nenhum sentimento no coração. O fato de pequenas seitas enviarem com alegria o mundo todo para o inferno, com exceção de si mesmas, com razão desagradou a muitos. Entretanto, se queremos conhecer a Deus, é vital que enfrentemos a verdade a respeito de sua ira, não importa quão fora de moda possa estar ou quão forte tenha sido nosso preconceito contra ela. De outro modo, não entenderemos o Evangelho que salva da ira, nem a realização propiciatória da cruz, nem a maravilha do amor redentor de Deus. Nem ainda entenderemos a mão divina na história e sua ação entre nosso povo. Não saberemos o que pensar sobre o Apocalipse, nem nosso evan-gelismo terá a urgência imposta por Judas: "a outros, salvem, arrebatando-os do fogo" (v. 23). Nem ainda nosso conhecimento de Deus ou o culto a ele estará de acordo com sua Palavra. Escreveu Arthur W. Pink:
A ira de Deus é a perfeição do caráter divino sobre o qual precisamos meditar freqüentemente. Primeiro, para que nosso coração possa ficar devidamente impressionado com o ódio divino contra o pecado. Temos a tendência de dar pouca atenção ao pecado, encobrir sua hediondez, desculpá-lo; mas, quanto mais estudamos e pensamos no horror que Deus tem pelo pecado e em sua terrível vingança contra ele, estaremos mais aptos a compreender sua infâmia. Segundo, criar o verdadeiro temor a Deus. em nossa alma para que "sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso 'Deus é fogo consumidor'" (Hb 12:28,29). Não podemos servi-lo "aceitavelmente" a menos que haja "reverência" por sua impressionante majestade e "temor" por sua justa ira, e tudo fica mais fácil quando nos lembramos freqüentemente de que "nosso 'Deus é fogo consumidor'". Terceiro, levar nossa alma ao fervoroso louvor (a Jesus Cristo) por ter-nos livrado da "ira vindoura" (1Ts 1:10). Nossa presteza ou relutância em meditar sobre a ira de Deus torna-se um teste seguro para saber se nosso coração está realmente dedicado a ele.8
Pink está certo. Se quisermos conhecer verdadeiramente a Deus e ser conhecidos por ele devemos pedir-lhe que nos ensine a considerar a solene realidade de sua ira.
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